Hoje me peguei pensando em você.
Não em você. Você. Do dia em que você disse que não queria matar ninguém quando
acionasse o portão eletrônico que era enloquecidamente ágil. Cai na risada. Ahhh,
e como não recordar da forma como tudo começou: com um bilhetinho colocado no seu carro com a cantada mais
barata, porém, eficaz. Abri um sorriso ao lembrar do dia que fomos à beira d'água de
roupa e ficamos pasmos em como não pensamos em levar roupa de banho. Perdemos a
oportunidade de nadarmos vestidos ou pelados mesmo. Na volta, com o sol se
pondo ao nosso lado, com os cabelos livres e o vento refrescante beijando nossas nucas, escutávamos à Tulipa
e cantarolávamos em coro bem desafinados nos olhando telepaticamente. Foi a imagem idealizada de quando eu era criança mas já me imaginava adulta. Me lembro
da cena em que eu estava de quatro, vomitando, e você paciente ao meu lado. Na verdade, eu passei mal várias vezes na sua companhia. Em todas essas ocasiões você foi paciente, cuidadoso, carinhoso, preocupado e, um tanto assustado com o
meu potencial de meter o pé na jaca. A cena, sequente, que me vem à mente, sou eu, toda
molhada do banho na cama, deitada no seu colo, enquanto você dormia sentado escorado no
guarda-roupa. Teve ensaio fotográfico também porque sua beleza tem que ser
exaltada. Olho as fotos e é inevitável não sentir vontade de voltar no tempo. Também teve estranhamento entre nós. A distância do dia a dia fazia com que
nascesse o sentimento de grude gratuito e, quando menos esperávamos, estávamos nós, fazendo alongamento numa tarde de sábado, na sala da sua casa, se odiando. Tudo isso porque logo a despedida viria e com
ela a saudade e, por fim, tudo que há mais de bonito no reencontro. Foi um bom
romance, o qual me guia quando surgem questionamentos familiares sobre relacionamentos.
O nosso foi leve, denso, intenso e frouxo. Não nos amamos e questionamos. Acho
que é porque foi mais, bem mais do que 4 letras.
Mariana chegava sempre primeiro na
escola. Assim evitava os olhares. Por seu cabelo ser muito volumoso a
professora preferiu que sua carteira diária fosse a última da sala. Sempre
gostou de ler histórias, mas quando era necessário ler em voz alta perante os
outros alunos, seu coração congelava, lia errado e com as risadas dos alunos, as
lágrimas caiam e pingavam no caderno. No recreio encontrou no banheiro seu
abrigo. Ali, ninguém a incomodava. Sempre repetia as refeições oferecidas na escola porque a tarde não sabia se haveria o lanche em casa. Em um dia
qualquer, enquanto estava na sala, a professora apresentou Nina. Era a nova aluna.
A carteira de Nina ficava ao lado de Mariana, no fundo da classe. Nina escreveu
um bilhete à Mariana, que estranhou. “Oi. Quer ser minha amiga?”. Mariana não
respondeu e começou a abrir o caderno para estudar Português, no caso, sua
matéria favorita. Na hora do intervalo, Nina abraçou Mariana e ofereceu metade
de seu lanche para dividirem. Mariana aceitou, mas se manteve calada, nunca
ninguém havia conversado com ela, nem a chamado para brincar, muito menos
oferecido a própria comida. Já sentadas no meio pátio, Nina abriu um livro. Era “O Escaravelho do Diabo”.
Mariana já tinha o lido três vezes junto com outros que conseguia roubar da
biblioteca da escola. Os seus preferidos eram os de mistério e, aparentemente, os de Nina também. Nina foi se aproximando aos poucos de Mariana e, após muita
insistência, se tornaram melhores amigas. Mariana se tornou mais confiante
quando era preciso ler em voz alta. Começou a participar mais das aulas e a
ganhar destaque com melhores notas. Começou a frequentar o intervalo no meio
dos outros alunos, mas sempre com Nina. As duas se tornaram uma só. No Dia do
Índio combinaram de ir com penas que combinavam. No Dia do Meio Ambiente, Nina
foi de verde representando as folhas e Mariana de marrom representando o tronco
das árvores. No dia do Halloween uma maquiou a outra com bastante ketchup imitando sangue. Já no primeiro dia da Semana da Consciência Negra as duas se olharam, se abraçaram como nunca antes,
deram as mãos e, pela primeira vez, por escolha, foram as últimas a entrarem na sala encarando a professora e cada um dos colegas de classe.
RUUD VAN EMPEL |
quão bom e necessário é se desligar
da situação e oposição. quão revigorante é respirar o ar puro mas também poluir
os pulmões com a fumaça que tranquiliza a ansiedade. sair a pé e parar em um
ponto estratégico para ver o pôr do sol que horas é rosa, horas laranja fogo e horas a combinação dos dois. lembrar
de retirar da gaveta o livro deixado de lado, abri-lo, cheirar suas páginas
velhas, retirar algumas traças e devorá-lo. o papo fútil das reclamações
cotidianas da vida nunca foi tão deixado de lado. ele sente falta de ser pauta de risadas embriagadas na companhia de cervejas geladas e amigos calorosos. o desejo de
aprender a pintar e fazer crochê estão martelando, sabiamente, no subconsciente.
tirar aqueles CDs velhos do Cidade Negra e dos Los Hermanos pegando poeira na
estante junto com o rádio - que caiu em decadência, seria confortavelmente
nostálgico. a fábrica de memes precisa voltar à tona para que as risadas na
hora do almoço ressurjam. o teatro de graça tá rolando na praça. o filme
aclamado pela crítica nas quartas tem entrada mais barata no cinema. aquela série
favorita merece ser reprisada porque sempre passa algo despercebido aos olhos e
a surpresa de novas análises podem surgir. a dieta merece uma trégua para devorar aquele lanche
monstruoso. os gatinhos para adoção aguardam, semanalmente, sem trégua a busca
por um lar repleto de carinho. sua mãe adora plantinhas, ela vive te oferecendo,
pode não ser uma má ideia alguns cactos e suculentas, até porque são fáceis de
cuidar e podem alegrar a casa. Que tal reiniciar o cotidiano com muito amor?
Estamos precisando.